Se todos falam a mesma coisa, desconfie.
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Um resumo da nossa conversa sobre padrões e desvios no sistema de moda.
Fonte: Olivia Merquior | O Sistema de Moda

Diante de uma conversa sobre moda ou mercado de luxo, de vez em quando digo: “a invisibilidade é a morte em vida”, de Zygmunt Bauman. Essa frase me ajuda a ilustrar o fascínio que a moda exerce na sociedade. Mesmo o mais cético dos ouvintes acaba concordando que, por mais que revistas de estilo, influencers especializados e desfiles não façam parte da sua rotina, por algum canal existe uma influência que se renova constantemente sobre como devemos orquestrar nossa imagem social para “parecer algo”.
Um sério jornalista avesso a acessórios de ouro, sem pensar muito sobre o porquê, decidiu ostentar uma armação azul-marinho de mais de 3.000 reais no rosto, com lentes igualmente grifadas, e veste uma camisa social branca com um pequeno jacaré na altura do peito. Independente dos valores envergados sutilmente pelo look, os quais eu evito comentar, ele concorda que há um padrão entre os homens que procuram um ar de seriedade: cores neutras, armações evidentes e o entendimento de que camisas brancas comunicam uma ética asseada.
Pronto. Eu digo: “Pronto, estamos falando de moda”.
Iniciamos, na aula aberta, uma conversa sobre a construção simbólica da imagem que elaboramos socialmente e sobre como essa montagem exerce mais uma função de disfarce do que de comunicação de valores efetivos. Na antecipada “sociedade do espetáculo”, o palco social se multiplicou, criando mais possibilidades de expressão ao mesmo tempo que novas gaiolas culturais. Isso abala modelos anteriores de pesquisa de mercado e geração de tendências, gerando a necessidade de readaptação das estratégias de reconhecimento de desejos comuns. No curso que começa no próximo sábado, vamos retomar os conceitos estruturais da moda para entender como agenciar o olhar de pesquisa nos tempos atuais.
PADRÃO E DESVIO
Quando se está sentado com um talento criativo, seja qual for a idade, a última insinuação que esse ser iluminado deseja ouvir atravessando a conversa é que todos fazemos parte de um sistema de padrões, até mesmo o gênio criador. Padrão é o lugar onde uma raça criativamente inferior enterrou seus sonhos e individualidades. Padrão é o uniforme, é a sexualidade nas novelas, são as festas corporativas, um mundo covarde demais para assumir seus desvios.
O desvio, sim, é a única possibilidade de existência. Falar diferente, ir de salto para a padaria e de chinelo ao black-tie, libertar novas sexualidades e exaltar desejos individuais sufocados em uma sociedade de convenções arcaicas. O desvio, tanto para o iluminati pós-moderno quanto para mim, é puro oxigênio. Porém, sem um sistema de padrões, como o da língua portuguesa, nós não estaríamos trocando ideias de forma tão prolífica. Poderíamos nos comunicar por gestos e sons inéditos, inventando uma nova forma de troca? Talvez; mas, sem formatar um padrão para facilitar o próximo encontro, cada momento de interação se tornaria uma tortura semântica.
A moda foi construída a partir de um sistema de padrões. Sistema que precisa ser atualizado recorrentemente quando a sua justificativa se esgota. Por ser um campo que exalta a diferença e a “autoralidade”, quem está dentro dele muitas vezes não reconhece as próprias repetições. No entanto, só se desvia se o padrão é conhecido. O melhor poeta compreende a fundo as estruturas da língua exatamente para poder propor algo novo. Na moda não é diferente.
Para entender como o sistema de moda funciona, e agenciar sua criatividade de maneira estratégica, é essencial saber identificar repetições e equilibrar expectativas individuais e coletivas. Nada mais recompensador do que conseguir pagar as contas fazendo aquilo que ama, certo?
O SISTEMA DE MODA
O sistema de moda no Brasil é particular e um dos nossos grandes erros é buscar soluções copiando modelos estrangeiros. Outro erro, no entanto, é acreditar que a história local está totalmente desvinculada das experiências internacionais. As estruturas dos sistemas de moda se repetem; o que muda são as características e dinâmicas de cada território.
Louise Wilson, a grande mestra por trás do sistema de ensino da mais prestigiada faculdade de moda do mundo, a Central Saint Martins de Londres, diz em uma entrevista ao canal ShowStudio que saber demais sobre o sistema de moda pode tornar o trabalho de novos talentos excessivamente racional, e isso não é uma coisa boa. No entanto, ela fala a partir de um centro de ensino fortemente atrelado à indústria europeia, onde olheiros de grandes marcas estão presentes, lembrando a todo tempo aos estudantes que eles fazem parte de uma engrenagem maior. Eu conheço bem essa rotina, pois me graduei lá. Na Inglaterra, Louise precisava afastar a voracidade das grandes marcas em fisgar novos talentos ainda no berço; no Brasil, atrair empresas interessadas em inovação criativa para o espaço da educação não é tarefa fácil. Problemas diferentes.
Dos Estados Unidos, Anna Wintour afirma, em entrevista recente sobre sua saída da direção da Vogue, que a moda deve olhar sempre para a frente e esquecer o passado. Mas, quando precisa escolher um local para o seu baile anual, o Metropolitan Museum (com seu acervo de 35.000 trajes e acessórios que vão do século XV até os dias de hoje) é o escolhido. Talvez, ao renegar o passado, ela esteja apenas se referindo às próprias lembranças, já que a preservação do patrimônio de moda está muito bem cuidada no Costume Institute e Vogue Archive.
Ainda assim, há quem insista em ver a moda apenas como o território da próxima grande ideia, ignorando a força política e econômica do patrimônio preservado pelos museus como base dos sistemas locais. O Brasil, o “país do futuro”, sofre de um sério problema de memória e, quando se fala em moda, a amnésia piora. Museus e acervos não são investimentos afetivos; são parte estrutural da valorização de toda a cadeia. É mais fácil olhar para o futuro quando o passado está assegurado — no caso de Anna, pelas talentosas mãos de Andrew Bolton.
Louise e Anna conheciam e conhecem nos detalhes, as engrenagens do sistema de moda, e, por isso, conseguiram articular mudanças significativas com suas visões. Ambas são admiradas e condenadas por seus feitos e também por sua objetividade cruel. E compartilham o fato de estarem inseridas em economias de moda desenvolvidas, onde a engrenagem é mais explícita do que no Brasil.
No Brasil, o entendimento sobre o sistema de moda e sobre como esse ecossistema de atores e funções se globalizou a partir dos anos 1990 ainda é confuso, especialmente quando se trata de compreender como ele se transforma com a presença da inteligência artificial. Explicações rápidas, impulsionadas pelos algoritmos das redes, misturam-se com opiniões apressadas. Nesse cenário de pseudo clareza e falatório articulado, muito se reclama e muito pouco se propõe — seja como articulação individual, seja como construção coletiva.
Qual é o estado do sistema de moda hoje? Para que ele serve? O que acontece no Brasil que o torna diferente de outros sistemas? Como as novas tecnologias alteram o funcionamento dessa engrenagem? Como desejos estéticos são gerados?
O objetivo da aula aberta foi iniciar a reflexão sobre a construção do sistema de moda no Brasil e seu funcionamento global ontem e hoje. Usando uma abordagem que mistura teoria e prática, filosofia e negócios, realidades locais e projeções internacionais, a proposta agora é aprofundar cada base e função desse sistema nos próximos quatro sábados iniciando dia 22 de novembro. Esse conjunto de informações estruturais amplia a capacidade de articular novas ideias e dá mais visibilidade a projetos futuros. Acredite.







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