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Moda e Nação

Atualizado: 15 de ago.


Os uniformes olímpicos revelam mais sobre a moda do que você imagina


Fonte:

Olivia Merquior | O Sistema de Moda - oliviamerquior@substack.com



Uniformes criados por Issey Miyake e apresentados no Tokyo's National Art Center em 2016

Estamos já no meio das Olimpíadas, e eu tenho um interesse especial pela forma como cada nação se representa e comemora suas medalhas. Também fico fascinada com o que alcançam pessoas treinadas por anos (vidas) para um momento olímpico. As Olimpíadas são uma ode à disciplina. Em um tempo que busca recompensas imediatas, ser atleta é mostrar comprometimento. Nos últimos anos, a moda investiu fortemente no esporte.


Segundo uma matéria publicada pelo El País em maio, esportistas têm sido considerados mais confiáveis do que celebridades, afinal de contas, eles representam bandeiras.


Essa edição olímpica é especial para a moda e a ocasião perfeita para pensarmos suas origens. Paris não abriga por acaso as marcas de luxo mais importantes do mundo. Antes de ser a capital da moda, ela foi a capital do mundo moderno. Da Torre Eiffel ao Gran Palais toda a cidade celebra marcos históricos desse tempo chamado Modernidade. Os próprios jogos olímpicos atuais são frutos dessa era, que no século XIX, começa a celebrar indústrias e pátrias.


No calor das disputas e do quadro de medalhas, na impressionante performance desses super-humanos que carregam os valores de seus países, a intenção deste texto é fazer a gente se perguntar: De onde vem tudo isso? E encontrar uma relação surpreendentemente direta entre moda e o orgulho nacional.


Eu havia finalizado esse texto sem falar sobre os jogos, mas a polêmica do uniforme brasileiro serviu de gancho perfeito para uma atualização. Junto a isso, a entrevista do Alexandre Herchcovitch no Roda Viva e as críticas nas redes sobre sua percepção de moda nacional também ajudam a tornar o que trago aqui mais coisa do presente. Afinal, o que é moda e o que é uma nação?


A MODA É MODERNA


Quando nós batemos no peito reivindicando uma moda nacional, estamos duplamente afirmando valores modernos. A moda não esteve sempre aí, a ideia de nação não esteve sempre aí e, talvez para a surpresa de alguns, o passado não esteve sempre aí. Quando falamos que uma pessoa é moderna, significa que ela faz parte de algo do presente, algo novo. Mas, para ser novo, isso precisa romper com o passado. E o que define o passado?


Lutamos por uma moda nacional, mas temos pouca curiosidade sobre como 8 bilhões de pessoas foram compartimentadas em 193 países, entre eles o Brasil. A Europa, e no caso mais específico da moda a França, é o berço do pensamento moderno que se dissemina pelo mundo junto com seu projeto expansionista. Os “descobrimentos” levam em suas caravelas a religião, os costumes, o capitalismo, a propriedade privada e, mais tarde, o tempo industrial para a vida de comunidades com cosmologias completamente diferentes.


A modernidade pode ser definida como um momento que o mundo europeu começa a romper com o pensamento medieval e entre os novos valores estão: a razão (ciência) como o principal meio de conhecimento, a separação entre religião e política (secularização), industrialização, urbanização (construção dos centros urbanos), individualismo, progresso, inovação e universalismo.


A modernidade busca estabelecer princípios e valores universais que possam ser aplicados a todas as culturas e sociedades, muitas vezes desconsiderando as particularidades locais e culturais.


A modernidade é um assunto complexo, com uma vasta bibliografia que discute de maneira não consensual o seu nascimento como também a sua morte. Seria muito ambicioso tentar, em um pequeno texto, dar conta de todas as discussões que envolvem esse tema. Meu objetivo aqui é apenas contextualizar as bases históricas que criaram o que entendemos hoje como MODA, para, em seguida, conseguirmos ter melhores referências para discutir finalmente o que seria uma “moda nacional”. 


Reivindicar uma “moda nacional” quer dizer se entender para além de uma nação, mas como parte de um estado-nação. No nosso caso, o brasileiro. A diferença é que nação define um grupo de pessoas de etnia, crenças ou língua semelhantes. Estado-Nação tem a ver com territórios geopolíticos fragmentados por guerras e assegurados a partir de acordos, na maioria das vezes, econômicos. Os ciganos, ou Romani, são considerados uma nação em um sentido cultural e étnico, embora não reivindiquem um estado-nação próprio. O conflito entre Palestina e Israel é causa e consequência desse longo momento histórico que compartimenta nações em territórios limitados (Estados-Nação).


Poucos são os pesquisadores que se dedicaram a compreender como a ideia moderna de nação foi construída. Um dos livros mais interessantes sobre o tema é “Comunidades Imaginadas”, do historiador Benedict Anderson. No prefácio do livro, a nossa mais recém imortal Lilia Schwarcz, explica que “mais que inventadas, nações são ‘imaginadas’, de maneira que fazem sentido para a ‘alma’ e constituem objetos de desejos e projeções”. E continua afirmando que “a nação constrói tempos vazios e homogêneos, e amnésias coletivas fazem parte desse jogo político”.


O mais desconcertante do livro de Anderson é olhar para algo que faz parte da nossa ‘alma’, algo tão enraizado, algo tão natural na experiência humana do século XX e XXI, como uma construção. O conceito de “pátria amada” mesmo gerando tantas tragédias, dificilmente é contestada por seus filhos. A pergunta que ele tenta responder é: “O que faz com que parcas criações imaginativas da história recente gerem sacrifícios tão descomunais?”


Entre as respostas está a entrada de novas tecnologias de comunicação. A imprensa para ele é ponto fundamental para assegurar a ideia de “camaradagem horizontal” (somos todos brasileiros!) em fronteiras determinadas por guerras e invasões. Mas, antes de chegarmos à construção do conceito de nacionalidade, precisamos entender o que muda com a expansão do pensamento moderno pelo mundo.



Sem nada que conectasse a dupla, os caminhos do estilista e do país se cruzaram por uma carta. Em 1988 o país iniciou seu movimento nacionalista. Em 1991 conquistou independência da União Soviética e entrou para o grupo das Nações Unidas (ONU). 1992 foi o primeiro ano de participação como nação independente.


MORTE E RENASCIMENTO


Ser moderno quer dizer “ser parte do que existe agora”. Ou seja, há uma ruptura com o passado. Na era medieval, no entanto, o passado era o que constituía o presente, principalmente pela história bíblica. Uma sociedade é construída a partir de recompensas e punições de acordo com leis estabelecidas. Do fim do Império Romano até o século XIV, a lei na Europa era em sua maioria os 10 mandamentos. O poder da igreja sobre a vida de todos era exercido por determinação divina. Obviamente, existiam os questionadores, os rebeldes, mas a construção do inferno e da ideia de passar a eternidade queimando era forte o suficiente para manter o controle sobre as ambições individuais. As grandes religiões, não apenas a cristã, aproximavam pessoas de lugares distantes que encontravam nas línguas de suas escrituras e nas ideias de paraísos um sentido para viver e uma motivação para arriscar a vida em guerras santas. Quem não concordava com Deus e suas leis, era retirado pela forca ou pela fogueira.


Daí veio a peste, a ancestral da COVID. Para muitos historiadores, foi a peste, que dizimou grande parte da Europa e das autoridades divinas, o evento que derrubou a onipresença do poder celestial. Uma das melhores literaturas da época é "Decamerão" de Boccaccio, onde ele escreve que “em meio a tanta aflição e miséria da nossa cidade, a veneranda autoridade das leis divinas e humanas estava quase totalmente decaída e extinta porque seus ministros e executores, assim como os outros homens, estavam mortos ou doentes, ou então se encontravam tão carentes de servidores que não conseguiam cumprir função alguma; por esse motivo, era lícito a cada um fazer aquilo que bem entendesse”. Logo na primeira novela do livro, ele descreve um pilantra que engana um padre e é canonizado, um atestado do enfraquecimento da autoridade clerical.


Para entender melhor o que significa esse momento “COVID” no século XIV, vale assistir à comédia erótica que Pasolini filmou na década de 70, "O Decameron".


Essa queda do poder da Igreja (mas não a sua dissolução completa obviamente) é primordial para a compreensão do pensamento moderno. A divina providência explicava os acontecimentos na vida das pessoas, suas condições servis, a propriedade das terras e os impostos que sustentavam aristocracias. Não havia um futuro projetado, uma vez que o destino já estava traçado ao nascer. Não existia mudança, não havia aparência (se fazer visível socialmente), não havia representação (ser algo que você não é), ou seja, não havia moda.


No século XV, a Florença de Boccaccio também é centro de uma convergência importante entre dois outros eventos fundamentais para a modernidade: a imprensa e o capitalismo. As negociações de capital, assim como a matemática, chegam à Florença pelo mundo árabe, e o tipógrafo chega como inspiração do Oriente via Johannes Gutenberg que morava em Mainz (parte do Sacro Império Romano-Germânico). No entanto, é em Florença que tudo se estabelece para a construção do que ficou conhecido como Renascimento.


O Renascimento marca a transição da Idade Média para a Idade Moderna.


No lugar da imagem religiosa não realista, o corpo humano volta a ser celebrado em detalhes como na antiguidade grega. As explicações divinas passam a ser insuficientes frente à sede pela ciência, pelo racionalismo e pelo poder da acumulação de metais preciosos. O primeiro banco do mundo estabelecido pela família Médici financia artistas como Leonardo da Vinci, Michelangelo, Galileo Galilei além de livros e bibliotecas. 


(É no século XV também que se inicia a expansão Européia pelo mar e seus protagonistas, como sabemos, são os reinos de Portugal e Espanha. Mas não vamos chegar ainda no Brasil, pois o sistema de moda estava sendo planejado em solo europeu.)


Alguns apontam “Hamlet” como o marco inicial do pensamento moderno na literatura. Quando Shakespeare escreve, por volta de 1600, “Ser ou não ser, eis a questão”, ele sublinha que o destino do personagem não é mais determinado por Deus, mas por suas próprias escolhas. Esse momento representa o início da consciência moderna, que começa a perceber que o futuro está ainda por ser escrito. Essas transformações não acontecem de uma hora para outra, nem de maneira uniforme na Europa. É aos poucos que uma nova forma de comportamento se espalha, como William S. Burroughs entenderia na década de 1960: “A linguagem é um vírus”.


A linguagem dos rituais de deificação antes restritos a cerimônias papais é repensada para reis que queriam projetar a mesma grandiosidade de imperadores romanos. Com uma alta-burguesia que começava a incomodar com a consciência de sua importância econômica e sem a força anterior da igreja para controlar os desejos e projeções da sociedade, resta às artes e à ciência a fabricação da divindade-rei. A pintura, o teatro, a literatura, a tecelagem, a metalurgia, a cerâmica, tudo passa a ser organizado para legitimar a figura do déspota e nenhuma corte soube melhor entregar uma imagem de poder do que a de Luis XIV.


Os uniformes da cerimônia de abertura da delegação francesa para as Olimpíadas de 2024 foram assinados pela grife Berluti. Uma das casas mais antigas de Paris foi fundada em 1895 pelo artesão italiano Alessandro Berluti. Nessa época, Paris era exemplo de modernidade sendo uma das primeiras cidade iluminadas por energia elétrica e concentrou cosmopolitas de todo mundo em busca de um novo tempo. As medalhas serão desenhadas pela Maison Chaumet (1780) e as malas pela Louis Vuitton (1854). Todas as marcas fazem parte do império de luxo construído por Bernard Arnault. LVMH é grande patrocinadora de Paris 2024.


O ESTADO SOU EU


Foi Luis XIV quem disse: “O Estado sou eu”. O estado, ou seja, as leis não eram de Deus, não eram da Igreja, menos ainda dos membros na nobreza, o que acontecia no reino da França até 1715 estava sob determinação de um homem, ou melhor, uma imagem divina materializada na terra. Em 1563, o humanista Étienne de La Boétie, já havia entendido que o poder sobre muitos não é um resultado da força, mas do convencimento. O que Luís XIV entendeu cem anos mais tarde foi que a representação, a imagem, a arte são instrumentos fundamentais de sedução da subjetividade humana, assim como a vaidade é um pecado facilmente manipulável em um mundo de valores pré-modernos.


Parecer honesto é mais importante que ser honesto.


Para concentrar poder, no entanto, você precisa de uniformidade, principalmente linguística e cultural. Hoje nós entendemos uma nação pela sua língua oficial, mas, em épocas de fronteiras elásticas, cada povoado parte de uma cidade, cada cidade parte de um reino ou cada reino parte de um império tinha sua própria língua, cultura, tradições. A escrita que conversava com todos era o latim. Com o enfraquecimento da Igreja, em 1539, Francisco I troca a língua oficial do reino do latim para o francês. Mesmo assim, o cotidiano dos povoados era tratado no vocábulo local. Vilarejos pertencentes ao reino, mesmo que próximos, podiam não se compreender devido às grandes diferenças linguísticas e culturais. Regiões como a Alsácia falavam alemão alsaciano, enquanto outras falavam bretão, occitano, ou dialetos flamengos. Foi Luís XIII, pai do XIV, quem ampliou o processo de unificação linguística e cultural na França com a abertura da Academia Francesa em 1635. O objetivo era padronizar a língua do território e promover a cultura nacional. A formação de um país passa necessariamente pela destruição da diversidade e construção de uma hegemonia cultural.


Note que esse projeto de concentração de poder era uma briga entre grandes, entre famílias que por anos guerrearam, criaram seus próprios exércitos e fortificações. A França de então era multiétnica e poliglota, assim disperso era o poder. Vários senhores feudais governavam terras de forma quase autônoma, tinham influência política e desafiavam o rei de acordo com seus talentos diplomáticos com outros reinos. Luís XIII, porém, havia plantado a semente da monarquia absoluta e entendido que a cultura era o caminho para se manter no poder.


Após a sua morte, restou à corte fabricar um rei tão poderoso quanto o sol, uma representação do próprio Deus. Um rei que mudaria sua administração de Paris para Versalhes e seduziria seus nobres a viverem em seu palácio para serem supervisionados e, longe de suas cidades, enfraquecidos. Um rei que criou uma engrenagem genialmente maquiavélica sob o lema “semear a discórdia para reinar” (divide et impera).


A etiqueta, a moda e o luxo franco-barroco formaram as bases centrais dessa estrutura de poder com os membros da nobreza mais preocupados em não serem ridicularizados nos eventos da corte do que com levantes contra os excessos do rei. Sem grandes ameaças, Luis XIV criou um complexo sistema de renovação estética que permitiu o controle social por meio da etiqueta e das aparências ao mesmo tempo que impulsionou o trabalho de artesãos e transformou a França no epicentro do luxo europeu (hoje mundial). Assim nasceu o sistema de moda.


Guarde essa relação entre centralização do poder e construção estética nacional, pois chegaremos em breve em um outro texto dedicado à construção da moda brasileira e as condições políticas têm semelhanças.


Note que no mapa do século XV Paris está em vermelho como parte do Reino da Inglaterra. Foi a Guerra dos Cem anos quando figuras como Joana D’Arc lutaram pela retomada de Paris ao Reino da França.


A ARTE DE ILUDIR


Luís XIV se muda para Versalhes aos 43 anos. O palácio foi projetado para impressionar visitantes e estrangeiros pela sua riqueza e grandiosidade, mas principalmente para controlar a sociedade de corte. Foi através da artesania de luxo, dos mercados de novidades e da vida teatral e ritualística cortesã que a França passou a unificar sua identidade nacional.


Apenas o melhor entrava em Versalhes. E com essa demanda forçada pela renovação, os mais talentosos artesãos chegaram de todos os lugares, estabelecendo-se em Paris e ao redor do Palácio Real. Produtos como a Seda de Lyon, Renda de Chantilly, Porcelana de Sèvres, Linhas de Abbeville, Couro de Cordovan, Vinhos de Bordeaux ou Champagne passam a fazer parte de uma reputação nacional. O reino francês era composto de regiões especializadas em artesanias de alta qualidade, mas foi a política econômica mercantilista (ancestral do capitalismo) de Luís XIV que as incluíram como manufaturas reais. A tapeçaria antes de Gobelins passa a ser, acima de tudo, francesa.


O século XVIII na europa ocidental marca não só o amanhecer do nacionalismo mas o anoitecer dos modos de pensamentos religiosos. A fé religiosa declinou mas o sofrimento que ela ajudava a apaziguar não desapareceu. (Benedict Anderson)O século XVIII na europa ocidental marca não só o amanhecer do nacionalismo mas o anoitecer dos modos de pensamentos religiosos. A fé religiosa declinou mas o sofrimento que ela ajudava a apaziguar não desapareceu. (Benedict Anderson)


Marie Antoinette decapitada fez parte da cerimonia de abertura das Olimpíadas Paris 24. Entre a morte de Luís XIV e a guilhotina de seu neto Luís XVI e de Maria Antonietta passaram 78 anos. Foi a era das revoluções: cientifica, industrial e francesa.


Júlio César, um dos mais famosos líderes militares e políticos da Roma Antiga, era mestre da intriga. Ele explorou como ninguém as rivalidades internas de grupos que, uma vez unidos, poderiam destituí-lo do poder. A partir da vaidade, ele fragmentava gauleses e o próprio senado, corrompendo líderes que impossibilitavam uma resistência organizada. Luís XIV fez o mesmo, mas aos moldes dos novos tempos.


Maquiavel havia publicado “O Príncipe” em 1532 e disposto sugestões importantes para um Rei manter seu poder, entre elas:


1. Seduza o povo pela aparência: É essencial que o príncipe pareça ser virtuoso, mesmo que não seja. A aparência de justiça, piedade e generosidade pode ser mais importante que a realidade.


2. Fragmente a elite pela discórdia: O príncipe deve garantir a lealdade dos nobres e da elite, mantendo-os sob controle e evitando que se tornem poderosos o suficiente para desafiar sua autoridade.


Moda quer dizer “à maneira de”, mas o que se viu em Versalhes foi algo muito diferente do que pessoas de uma mesma cidade que decidem prender o cabelo “à maneira de” um visitante.


Moda aqui não é uma questão de estilo, mas o planejamento de uma máquina política. Máquina essa com o objetivo de criar uma cultura simbólica renovável capaz de governar condutas e sustentar uma série de oficinas, transformando artesãos em exímios artistas. Os mercados de novidades com os melhores e últimos produtos acontecem em Versalhes. Luís XIV e sua entourage organizaram uma forte estratégia que Honoré de Balzac daria sentido no século XIX : “A Moda é o governo das aparências”. Investir na última moda, no melhor tecido, sapato ou peruca, significava alinhamento com a incipiente ideia de nação. Saber se vestir, comer, dançar, falar à moda francesa era uma demonstração de respeito e comprometimento político.


É aqui também que uma palavra passa a fazer parte do vocabulário europeu: sofisticado. A origem da palavra é enganar, no sentido de que algo não é mais puro ou simples e sim “adulterado desonestamente”. “Sophistiqué” classificava um talento em iludir, na Grécia antiga pela palavra, na corte francesa pela aparência. Parecer o que não se é, é a estrutura ontológica da moda.


AS NAÇÕES


Para esse texto não virar um testamento, vou dar um pulo no tempo. Não existe um marco definido para o início da viralização do pensamento moderno pelo mundo, mas o século XIX passou a ser visto como o século de concretização de seus valores de secularização, industrialização e universalidade. Nietzsche declara que “Deus está morto” em 1883, quando muitos procuram novos alentos existenciais em discursos patrióticos. Eventos grandiosos como as exposições universais e os jogos olímpicos se espalham pelos recentes países enaltecendo avanços tecnológicos e o poder das nações. Paris tem seu passado demolido pelo prefeito Haussmann que abre grandes avenidas, parques e bulevares e vira exemplo de urbanização. Os exímios artesãos, antes reais, se transformam em maisons de produtos de luxo na nova república democrática. Hermès, Louis Vuitton, Berluti, Lanvin, Cartier e muitos outros abrem as portas na segunda metade de 1800. O espírito cosmopolita de Paris vira símbolo de cidade moderna e tudo que ali acontece, da urbanização à literatura, das artes ao estilo passa a ser copiado por países e ex-colônias como o Brasil.


Em 1992, o fotógrafo holandês Hans Eijkelboom começou a tirar fotos de pessoas na rua com semelhanças de estilo. A curiosidade rendeu o livro People of the Twenty-First Century e uma matéria na Wired em 2015 com o título “Fotos que provam que somos todos apenas ovelhas”.


Os Estados Unidos são os primeiros a conquistar a independência ainda em 1776, mas é apenas no século seguinte que o processo de descolonização passa a acontecer em cadeia no resto das Américas. Os primeiros movimentos de emancipação, no entanto, têm mais a ver com a organização de uma elite econômica do que com um levante popular. Para lutar pela independência de um país, primeiro, seus cidadãos precisam se compreender como parte de uma nação de valores comuns, e, nas colônias, esse não é um processo fácil. Por exemplo, o Brasil se torna um reino independente de Portugal em 1822, mas o processo de construção de identidade nacional é um projeto só realmente colocado em pauta 100 anos depois. ( Os Colonos é um ótimo filme sobre o assunto ).


Caracteriza um Estado-Nação um território definido, um governo centralizado e uma identidade nacional compartilhada.


Comemoração atual do dia da independência do Peru que aconteceu em 1821.


As guerras e invasões fazem parte da história da humanidade. Na modernidade, no entanto, a identidade nacional é o principal fator que legitima os enfrentamentos armados. As Olimpíadas na Grécia antiga, voltando ao início do nosso texto, eram eventos sagrados que estimulavam o exercício no cotidiano de fazendeiros e artesãos que poderiam vir a ter que defender suas vidas e espaços comuns. A luta era por algo prático e próximo. Não existia a ideia de nação grega, mas sim de diversas cidades autônomas que compartilhavam de língua e religiosidade semelhantes, mas não se viam como iguais.

Gregos eram vistos pelos olhos estrangeiros; entre eles, eram Jônios, Dórios, Aqueus.


“o uso do nós, presente nos hinos nacionais, (..) faz com que o sentimento de pertença se sobreponha à ideia de individualidade e apague o que existe de “eles” e de diferença em qualquer sociedade”. (Lilia Schwarcz)


O que Benedict Anderson fala em seu livro é que apenas com o desenvolvimento da imprensa e dos jornais em línguas nacionais é que um evento que acontece dentro de um território passa a fazer parte da discussão de outros que compartilham das mesmas fronteiras. O processo se amplifica com novas tecnologias de comunicação. Como ele diz: “A nação é imaginada porque mesmo os membros da mais minúscula das nações jamais conhecerão, encontrarão ou nem sequer ouvirão falar da maioria de seus companheiros, embora todos tenham em mente a imagem viva da comunhão entre eles”. No entanto, o processo de criar comunhão entre pessoas desconhecidas não é um processo natural, e sim uma construção editável da memória coletiva. Segundo ele, desde Luís XIV, os eventos históricos passam a ser modelados com objetivos políticos conscientes, e isso se expande para o resto do mundo na modernidade. Sem ordem divina ou direito dinástico, os líderes nacionais passam a ser aqueles que constroem narrativas convincentes para a maioria das pessoas inseridas no processo político, um sentido para estarem juntas.


O sistema de moda tem importância fundamental na construção dessas recém-imaginadas nações, assim como dá suporte para o progresso industrial de seus países. Desde os uniformes até o estilo adotado nas ruas, a aparência de uma nação comunica sua história e valores. A imprensa moderna não apenas compartilha acontecimentos nacionais criando uma aproximação artificial entre as pessoas, mas também difunde normas de comportamento. É no século XIX que revistas como Harper's Bazaar (1867) e Vogue (1892) são lançadas nos Estados Unidos educando suas senhoras à luz da elegância francesa, mas também ajudando a construir a identidade americana. A felicidade pelo consumo passa a ser o combustível do mundo moderno e vira alento para o vazio existencial deixado pelas religiões.


As duas guerras mundiais que acontecem na primeira parte do século XX são consequências desse momento de realinhamento identitário. As vitórias e derrotas passam a ter ligação direta com a capacidade de grupos se identificarem como nações unificadas em seus territórios. Para entrar em uma guerra, os cidadãos precisam acreditar em algo que os une, não por suas experiências e ancestralidades, mas por um sentimento de que todo o território nacional é o seu lar e todos ali dentro compartilham uma história comum, seja pela dor ou pelo sucesso.


A esse respeito, o ensaísta Tom Nairn escreve: “O ‘nacionalismo’ é a patologia da história do desenvolvimento moderno”. É a ideia de nacionalismo aliada a desilusão cotidiana (a promessa não cumprida de progresso) que leva a população alemã a buscar redenção no discurso nazista de supremacia racial que proclamava que os arianos eram a raça superior, destinada a dominar todas as outras raças. Diante de uma situação política e econômica deteriorada, a “raça ariana” é inventada (com suporte da ‘ciência’) para promover o orgulho nacional e a ideia alienada de uma Alemanha racialmente pura. A união nacional pela ameaça de todos que não são ‘nós’. O sistema de moda e hegemonia cultural de Luis XIV foi tão bem estruturado que quando a França foi ocupada pelos alemães na segunda guerra mundial uma das estratégias de humilhação foi tentar acabar com a elegância do vestuário das francesas, orgulho nacional. Eles não conseguiram.


Em 1938, a Hugo Boss começou a produzir uniformes para as forças armadas nazistas. A história foi contada no livro “Hugo Boss, 1924-1945 de Roman Köster.


IDENTIDADE E ORGULHO


O fim da segunda guerra marcou um novo momento da modernidade e da busca por identidade. Para uma geração pós 1945 foi mais importante ser beat, hippie ou punk do que reivindicar uma nacionalidade. Lutava-se pelo direito de andar pelo mundo e não por um lar fixo. A ideia de fronteira foi questionada como sendo um cerceamento das experiências individuais. A unidade desses andarilhos estava na aparência, nos símbolos que carregavam no vestir, não em uma bandeira.


Assim como o movimento romântico do início do século XIX acusava o progresso de acabar com as emoções, a geração pós guerra também foi buscar se libertar de um mundo de subjetividades industriais. Como seu resultado temos a confusa cultura do mundo digital que ao mesmo tempo que defende a pluralidade identitária cria movimentos nacionalistas. Essa complexidade já havia sido discutida por escritores como Bruno Latour que em 1991 diz que “Nunca fomos modernos” uma vez que “a modernidade não é uma quebra completa entre a natureza e a política, nem entre o místico e a ciência, mas um momento de tramas híbridas que misturam em sua compreensão de realidade ciência, política, economia, direito, religião, técnica, ficção”.


“As identidades são bênçãos ambíguas. Oscilam entre o sonho e o pesadelo, e não há como dizer quando um se transforma no outro.” (Zygmunt Bauman)


O mundo atual vive um processo semelhante ao movimento romântico do século XIX quando uma aversão ao racionalismo e expansão tecnológica moderna reuniu escritores e pintores que invocavam valores ancestrais relacionados à natureza, à emoção e à tradição. O uniforme da Mongólia para as Olimpíadas busca as origens que os unem e diferenciam como grupo em um mundo de valores cada vez mais universais.


O mundo ainda vive conflitos por territórios e as redes expandiram a atenção de todos para os lugares mais remotos do planeta. O que acontece não apenas no país, mas no mundo, hoje é da conta de quem assiste. A linha de produção inaugurada pela revolução industrial se expandiu das fábricas para o imaginário, criando discursos universais governados por algoritmos. Hoje, sabe-se mais da vida de uma celebridade do que sobre o vizinho. Engaja-se com tragédias do outro lado do mundo, sem se relacionar com decisões de condomínio.

Essa nova relação entre pessoas e informações é chamada de desterritorialização. E o movimento traz consigo uma nova busca de identidade, uma procura por algo que parece ter sido perdido em um mundo universalizado. Referências que nos ajudem a entender quem somos, de onde viemos. Nesse processo de identidade perdida ou nunca totalmente construída, procura-se respostas objetivas sobre o que é daqui e o que é do outro. Na caso das colônias essa tentativa de retorno às origens puras é ainda mais confusa e perigosa. O açaí sendo uma fruta nativa do brasil seria mais brasileira do que a banana trazida da Ásia?

A seda que exportamos seria menos brasileira por ter sido cultivada por alemães? A famosa renda renascença de Pesqueira é menos nacional por ter sido ensinada por franceses? A Tropicália é menos relevante por ter tocado guitarra? O futebol é menos brasileiro por ter sido trazido da Inglaterra? Essas são perguntas importantes para pensarmos quando procuramos entender o que seria a cultura e a moda brasileira.


Delegação do Brasil em Londres 2012


O TEMPO


A modernidade representa uma mudança estrutural no modo como as pessoas percebem o tempo e compartilham seus ideais de sociedade. Ser moderno é adotar o tempo da máquina como referência tanto para o trabalho quanto para o lazer, garantindo assim um bom funcionamento social. Não é surpreendente, portanto, que o desenvolvimento do pensamento moderno esteja profundamente entrelaçado com a história dos relógios. A modernidade trata do controle do tempo. Essa maneira de interagir com o mundo, pautada pelas horas, está presente nos dispositivos, mas se espalha principalmente pela linguagem.


Em 2011, um artigo foi publicado sobre a tribo indígena amazônica chamada Amondawá. O primeiro contato desse grupo com o mundo moderno ocorreu em 1986. Os pesquisadores observaram que, na língua original Amondawá, não existem palavras equivalentes a “tempo”, “mês” ou “ano”. Também não há termos para definir movimentos temporais como “passou” (passado) ou “está muito à frente” (futuro). A hipótese dos pesquisadores é que a ausência do conceito de tempo se deve à falta da “tecnologia do tempo” — como calendários e relógios. No entanto, uma vez que a tribo passou a aprender português, algo que está se tornando cada vez mais comum entre eles, a noção de tempo foi facilmente incorporada.


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